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domingo, 12 de janeiro de 2020

Vigia das horas

A noite vigia àqueles que se olham
Entre as luzes que recaem
Sobre toda a cidade.

Troca segredos e afagos
Contando cada respiração
E, por fim, desmaia serena
E vagarosa sobre o calor das palavras.


Ela se vai sem querer e
Entre os sorrisos trocados
Deseja, silenciosamente, permanecer.

O silêncio não lhe basta
Nem o som dos sussurros
Nada a preencheria, não fossem as horas.

O céu se rabisca de estrelas e cores
Nas nuvens há pressa
E nos sonhos terrenos... Ah!
Se ela quisesse lhes suspenderia as asas.

Enquanto o tempo se esquece de passar
As pequenas promessas nascem
Sem prazos para se cumprir.

Há passos apressados
De pessoas lá fora
Enquanto lá dentro as horas
Continuam a passar.

E se vão, findando sossegados
Seus risos compartilhados
Feito casal de passarinhos.

A noite, bonita, todavia cansada
Já não luta para seguir,
De resto só lhe cabe contemplar
Todos os seus melhores "se".

domingo, 22 de abril de 2018

Canção de viver

Cante uma música bonita
Daquelas que se entoa em assovio
E lembre do cheiro bom
Das noites chuvosas
Cante um canto ameno
Que me dê passagem e lembranças
Da mata densa, do açoite do vento
Do peito encarnado
De amor e de luzes
Uma música calma para 
Ninar os pensamentos de um mundo distante
Cante muito alto
Tão alto que eu consiga te ouvir noutra vida
Tão forte que eu consiga te sentir
E tão suave, que me acorde sorrindo.

segunda-feira, 11 de setembro de 2017

Cetim na calçada

Daqueles dias em que me atrevi a sentar pelas calçadas
E beber, da garrafa, o mesmo vinho que bebias
Levo comigo memória curta
Como algo que ocorreu há muito tempo
Em outra vida, num outro corpo
Sentir-me pluma flutuante, em meio à poluição, perdida, sem rota
Em queda livre como um pássaro sem vida
E, de súbito, lembrar-me que ainda continuo aqui
É o aviso para atentar e voltar a subir, pairar sem motivos no ar
Um cetim vermelho surrado do chão
A nobreza ainda lhe batiza
E ao enveredar em meio aos seus danos
há de se embebedar no conforto
Como deslize suave de mãos sobre a pele
Das calçadas em que dormi, recordo-me de você
Da embriaguez e de tudo que foi sóbrio
Prefiro as boas doses de bebidas
Daqueles bocados que descem feito fogos dentro da gente
Sinto, nesta noite fria, que nem aquele vinho barato aqueceria meu ser
Nem as palavras sem rumo ou os assovios do vento
Trago uma queimação no peito que não se explica
Como quando nos perguntam como estamos
E respondemos, educadamente, "vou bem"
Meu coração palpita, berra, acalma
E acalmar é momento raro
Raros também são os risos de dentro
Os de fora estão sempre aqui
Eu, como uma bebida barata, tingindo de vinho
O mais nobre dos cetins.

Sobre o mal que é a doença da alma.
Ana.